opinião

O Estado, os papéis e as pessoas



Dia desses liguei para o Ministério Público. Queria resolver a situação de duas pessoas portadoras de paralisia cerebral que, no meu entender, poderiam ser prejudicadas por uma decisão daquele órgão. Em uma longa fala, expus a situação, apontei onde julgava estar o equívoco e sugeri uma possível solução rápida e fácil. Eis então que ouvi de um simpático servidor uma resposta negativa, porém sincera e, sobretudo, desconcertante: "Infelizmente, doutor, o Ministério Público lida com papéis, não com pessoas", disse o rapaz bem intencionado, num imperdoável acesso de sincericídio.

Sim, eu sei que o Ministério Público lida com papéis, mas me incomodou ouvir uma confissão assim, tão explícita, dada de maneira tão descontraída, como se isso fosse normal.

Com isso, me lembrei de outra situação semelhante: Discutia num outro processo a nomeação de agentes comunitários de saúde para uma região pobre da cidade. Apresentei já na inicial dois longos estudos acerca da realidade sócioeconômica daquela comunidade, e um outro estudo sobre a importância dos agentes comunitários de saúde. Trouxe, inclusive, dados estatísticos que sugeriam a eficácia deles no combate à violência. Modéstia à parte, um primor de petição.

Em sua contestação, no entanto, a procuradora do município afirmou que aqueles estudos eram "dispensáveis" num processo judicial, deixando claro que a realidade social daquela localidade pouco importava para o município. Ok, sabemos que a realidade de uma comunidade carente pouco importa para burocratas de ar-condicionado, mas não precisava me jogar isso na cara. Doeu!

Lembrei também de ouvir no rádio um desembargador aposentado alardeando que, quando em atividade, costumava dar prioridade a processos que considerava importantes, em detrimento daqueles que chamou de "irrelevantes". Tá bem, eu sempre soube que o pedido de aposentadoria do Zé das Couves recebia menos atenção do que a ação milionária de uma multinacional, mas, com o devido respeito, eu podia ter ido dormir sem ouvir tamanha barbaridade.

Foram essas algumas confissões relativas a algo que, em verdade, já estamos carecas de saber. Nossas instituições estão distantes da sociedade. Não são pensadas para solver os problemas da população, mas apenas para tramitar papéis e, assim, justificar sua própria existência. Numa burocracia torta, a eficiência de um órgão é medida pela quantidade de documentos que movimenta e não pela efetividade com que atende à população.

Os próprios agentes públicos, frequentes alvos de críticas, são muitas vezes vítimas de um sistema que premia quem se dedica aos papéis e pune os que fogem desse padrão. Para termos um Estado efetivo, uma reforma se mostra necessária, uma reforma estrutural, de paradigmas, de conceitos. A pergunta que fica, no entanto, é: será que o povo quer mesmo um Estado que funcione?


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